Democracia e Participação Cívica
A conferência integrada no programa «Quadratura do Círculo» da SIC NOTÍCIAS, onde no passado sábado participou o ex-Presidente da República, Jorge Sampaio, concluíu, sem grande surpresa, que o desinteresse dos cidadãos pela vida pública se acentuou.
De facto, excepto em momento de eleições – nas quais a taxa de abstenção também é cada vez maior -, raramente os portugueses se sentem interessados em participar na condução dos destinos da comunidade e, quando o fazem, é porque se instalou uma consciência generalizada de que algo está mal e é preciso mudar. Consequentemente, é cada vez mais raro encontrar-se assistência nas reuniões das Câmaras ou das Assembleias Municipais, ao passo que a procura de informação sobre a vida cívica decresceu substancialmente e a recusa em tomar parte em actividades políticas ou militar em partidos tem seguido a mesma tendência.
Os motivos, esses, são muito discutidos, algumas vezes com rigor e pragmatismo, outras com demagogia e um certo distanciamento táctico da realidade.
Por agora, e como não me considero minimamente especialista na matéria, nem me encontro sequer, na disposição de dados que possam sustentar uma dissertação muito profunda, deixo algumas sugestões, relativamente àquelas que podem ser as verdadeiras causas do “divórcio” dos cidadãos com a política:
1. Em primeiro lugar, o ritmo de vida acelerado dos nossos dias e o individualismo que caracteriza esmagadoramente a sociedade portuguesa. Sabe-se que o tempo é curto, dividido entre o trabalho (ou a escola/faculdade) e a vida familiar, e que, o que resta, é empregue em actividades que possam proporcionar directamente conforto e satisfação pessoal, a despeito de todos os outros temas que se prendem com o comunitário e com o colectivo. É por isso que não é só a política a merecer-nos um profundo desprezo. São também as associações, as ONG’s, os clubes (não de futebol, claro), as fundações e até outras manifestações mais simples de cidadania, como sejam a participação em reuniões da assembleia-geral de moradores do nosso prédio ou a aceitação do cargo de administrador do condomínio;
2. Depois a falta de informação sobre o tema. Esta causa, que alguns consideram irrelevante ou facilmente ultrapassável (argumentando que a infomação existe, o que não há é interesse em adquiri-la) é na verdade bem fácil de comprovar. Basta tentarmos perceber quantos de nós sabem com rigor quais são as funções exactas do Presidente da Repúbica, do Governo, dos Deputados da AR, dos titulares dos órgãos das Autarquias Locais (e aqui não só do Presidente da Câmara, unanimemente mais reconhecido, mas também dos Vereadores, dos Deputados Municipais, dos presidentes de Junta e dos Executivos de Freguesia)… Um estudo, ainda que pouco rigoroso, chegaria à conclusão que apenas uma pequena parte dos portugueses detém informação detalhada sobre o assunto. E menos ainda sabem como funciona um partido político ou uma associação, qual é a orgânica duma empresa pública ou até quais são os direitos individuais que constitucionalmente nos assistem e as respectivas formas de os fazer valer;
3. Também de considerar é a superficialidade com que algumas questões nucleares da vida cívica são abordados pelos meios de comunicação social, sobretudo pela televisão, que continua a ser aquele que é esmagadoramente mais procurado. Dou um exemplo: no caso concreto da reforma da segurança social, pouco se viu de detalhado, em telejornais, sobre a essência e as linhas de força dos projectos apresentados, tanto pelo Governo como pelo PSD. Assim, a discussão ficou-se ao nível da troca de acusações e dos argumentos de circunstância e a cobertura mediática da questão, centrou-se essencialmente na chamada, “chicana política”;
4. O elitismo com que a vida pública é vista pela generalidade dos cidadãos - herança dos tempos do “silêncio forçado” do «Estado Novo» , que parece ainda não nos ter abandonado - é também um factor importante. Ora, isto significa que, para muita gente, a participação e a decisão políticas são dois fenómenos a que o cidadão comum deve ser completamente alheio, o que, de imposição do Salazarismo, se transformou numa forma muito cómoda de afastamento dos problemas e de demissão das responsabilidades pela sua resolução.
Na prática, todo o português que se preze é um crítico activo do “sistema”, um observador atento da “República das Bananas” em que o seu país se tornou, um juíz rigoroso da classe política, um teórico mordaz das debilidades do Regime, ou até, a outro nível, uma vítima indefesa do Estado “saqueador” e “oportunista” a cujas regras parece prestigiante desobedecer (e aqui cabe o português solidário, que na estrada avisa os outros condutores da aproximação da GNR-BT, mas no entroncamento anterior não cedeu passagem a quem devia e ainda buzinou aos ouvidos de quem reclamou ter prioridade)! Mas bem poucos estão dispostos a ser mais do que isso;
5. Para os que acompanharam activamente a implantação do Regime Democrático e as vicissitudes do processo revolucionário, de 25 de Abril de 74 a 25 de Novembro do ano seguinte (com o triunfo da Democracia Representativa de tipo Ocidental), a falta de participação cívica, pode talvez justificar-se pela perda de entusiasmo, de dinamismo da vida política, associadas à normalização constitucional. A este propósito, o Prof. Marcelo Rebelo de Sousa, numa entrevista à Visão, disse uma frase que me parece resumir bem o teor do actual momento político: “ Agora vive-se habitualmente a Democracia, com tudo o que tem de mais pacífico e de menos heróico ou galvanizante”;
6. Existem também algumas franjas da população que não se reveêm no Regime vigente, nem no modelo de Estado e de Direito gizado pela CRP de 1976. Tal posição, perfeitamente legítima, não parece porém ser sinónimo de absentismo. Diria mesmo que o desinteresse se move com mais segurança, entre aqueles que não têm propriamente uma opinião crítica sobre o sistema político e simplesmente o dão como “um dado adquirido”;
7. A relação ausente, ténue, entre eleitos e eleitores, representantes e representados, cataliza certamente fenómenos de desinteresse. Quantos portugueses sabem, por exemplo, quais são os deputados eleitos pelo círculo eleitoral do distrito em que residem? E quantos saberão como contactá-los? Fazer-lhes chegar as suas queixas, as suas dúvidas ou as suas sugestões?;
8. Finalmente, a causa mais citada e certamente uma das mais importantes: o desencanto com a política e a descredibilização das instituições representativas aos olhos da opinião pública. Fruto de expectativas quebradas, de esperanças demasiado ambiciosas e posteriomente goradas ou até de comportamentos displicentes dos titulares de órgãos públicos, pouco prestigiantes do cargo que ocupam e do próprio Estado enquanto entidade política… seja qual for a explicação que possamos encontrar para este fenómeno, o facto é que ele existe, e tentar negá-lo, é o pior ponto de partida para encetar uma discussão séria sobre a parca participação cívica registada em Portugal;
Soluções? Ainda que possa soar demasiado a panaceia (até pelo número de vezes que já me referi a ela) só vislumbro uma: a formação cívica, o investimento na Educação para a Cidadania, para uma Cidadania activa, mas também esclarecida e responsável.
Só a formação cívica contribuirá para:
§ O eclarecimento sobre a dinâmica funcional do Regime, potenciando a participação naquele;
§ Incutir nos cidadãos um sentimento de crítica permanente do Sistema Político e até da própria Constituição. Mas não uma crítica passiva, derrotista, não a crítica sem soluções. Uma crítica sim, mas com alternativa, com mudança, com inovação, uma crítica visando o aperfeiçoamento não a ridicularização gratuita;
§ Estimular nos eleitores, um sentimento de avaliação responsável e criteriosa dos eleitos, no sentido de, continuamente, conhecerem os que cumprem normalmente as suas funções e os que não o fazem, punindo-os em momento oportuno;
Só a formação cívica potenciará uma cidadania activa, consciente mas também séria e responsável. Porque mais importante que participar, é fazê-lo com informação.