Vicarious Liability
terça-feira, agosto 28, 2007
  Guerra Gelada

Durante séculos, a região do círculo polar árctico não passou de uma enorme arca congeladora de onde não se podia retirar praticamente nada, pelo que ninguém se interessava muito naquelas terras. É um fenómeno que deriva da própria natureza do ser humano: ninguém quer pagar a conta da electricidade de uma arca vazia, e já que não se pode deitar fora que se desligue da corrente e ninguém se incomoda.

Eis que começa a derreter o gelo, e por baixo identificam-se diamantes, petróleo, gás, urânio, e sabe-se lá mais o quê. De repente vão os russos enfiar uma bandeira no fundo do oceano; segue-se o Primeiro-Ministro do Canadá a anunciar investimentos milionários na região; Dinamarca e Noruega acordam e espreitam uma oportunidade para ombrear com as grandes potências. Os Estados Unidos estão sempre atentos, porque sabe que a Rússia vai investir tudo para compensar a estupidez de 1867, quando vendeu o Alasca por 7,2 milhões de dólares (5 cêntimos por hectare). A novidade mais recente é o argumento geofísico: cientistas russos afirmam com toda a veemência que a cordilheira submarina de Lomonosov, no Pólo Norte, é a continuação da plataforma continental siberiana, logo deve ser parte do território da Rússia (afirmando simultaneamente que o estudo só estará concluído daqui a cerca de um ano). Naturalmente, os dinamarqueses já estão a tentar provar que Lomonosov é, afinal, o prolongamento da Gronelândia.

Ora aí estão lançados os dados para mais uma guerra verbal e tecnológica, ao estilo das explorações espaciais durante a guerra fria. A tensão política provocada pelo choque ideológico não é tanta, mas o valor económico em jogo é incomparavelmente superior, e compensa o risco dos avultados investimentos. Até há meia dúzia de anos era uma arca congeladora arrumada no canto mais recôndito da casa, agora é a arca do tesouro que todos querem ter só para si a qualquer preço. As minhas palavras não conseguem ser melhores que as de Roger Waters, neste e em quase todos os casos de política internacional: Can't you see? It all makes perfect sense, expressed in dollars and cents, pounds, shillings, and pence”.

 
terça-feira, agosto 14, 2007
  Verdades que incomodam
"O tempo humano não anda em círculo, mas avança em linha recta. Por isso o homem não pode ser feliz: a felicidade é desejo de repetição. Sim, a felicidade é desejo de repetição." - Milan Kundera, in "A Insustentável Leveza do Ser"
 
segunda-feira, agosto 13, 2007
  Crónicas de um País Dividido
Como é conhecido de alguns leitores, o destino das minhas férias de verão deste ano foi os Balcãs, mais pormenorizadamente, a Croácia e a Bósnia-Herzegovina, com o objectivo principal de participar no Festival Internacional de Međugorje, na região oeste da Herzegovina, festival este que se dedica a unir jovens católicos de todas as nações do globo à volta do culto da "Gospa", o nome croata da Virgem Maria. O festival, escusado será dizer, põe Fátima (com todo o respeito) a um canto, por uma enorme ordem de razões que, contudo, por não ser esse o tema que me interessa aqui desenvolver, não irei expôr. Desafio, pois, qualquer alma crente ou não-crente que sinta em si a curiosidade e o chamamento a viver a experiência, se quiser saber o cardápio de motivos que separam Fátima de Međugorje.

Contudo, a minha viagem não se ficou, tão-pouco, pela vivência da fé religiosa e pela diversão e conhecimentos proporcionados pelo Festival. Toda uma região se revelou ao meu conhecimento, ou pelo menos uma parte dela, e que região essa - uma região europeia na qual pelo menos 3 culturas convergem, de forma não muito pacífica, como o comum mortal pode aferir das mais ou menos recentes guerras e conflitos étnico-religiosos passados na última década, rica pela convergência de três povos, rica em paisagens belíssimas e não menos belíssimas pessoas, contudo, tornada pobre pelos conflitos e pelos choques não ideológicos, não políticos, mas étnicos, religiosos e culturais.

O tempo que passei nestes dois países, mas especialmente, na BiH (Bósnia e Herzegovina), fizeram-me questionar o porquê repentino de tais guerras, de tão acérrimos choques culturais e de tão crueis "vendettas" entre os povos que compõem a população destas terras. Já conhecia o passado histórico da região - sabia que originalmente, a população europeia e católica se misturara, após o grande cisma, com a população eslava e ortodoxa, e que tudo se havia complicado com a junção de uma nova cultura e de um novo povo, o muçulmano, como consequência da invasão e conquista da região (ou de boa parte dela - excepto a Croácia) pelo Império Otomano, ao longo dos séculos XVI e XVII - o que iria fazer nascer as três civilizações, com suas próprias culturas e tradições bem arreigadas no seio do sentimento de cada indivíduo. O que me perturbava a alma era o "porquê" de, subitamente, após a queda do Comunismo Jugoslavo, e do desmembramento da Federação das Repúblicas Socialistas da Jugoslávia, fundada pelo Marechal Tito, ter-se dado o recrudescer das tensões étnicas, culturais e religiosas entre estes três povos, se até ali estes tinham convivido durante séculos com relativamente poucos surtos de nacionalismo de assinalável menção.

Encontrei a resposta nas conversas e contactos que tão carinhosa e apaixonadamente mantive com os meus correligionários croatas, e na minha própria lógica e raciocínio. Tito conseguira ter suprimido as diferenças entre as nacionalidades várias que compunham a grande Jugoslávia não-alinhada dos tempos da Guerra Fria, impondo pela força da ditadura aos povos da Jugoslávia uma quimera, quimera essa que se chamava "burguesia" ou "capitalistas" ou "estrangeiros". A essa quimera, o regime comunista apelidou de "inimigo". Durante décadas sem fim, desde 1943 a 1991 (data do começo do desmembramento da Federação Socialista), inúmeras gerações foram educadas e re-educadas nesta quimera, e com isso, o regime conseguiu substituir a divisão que as diferenças étnicas, culturais e religiosas impunham, pela coesão que a condição de "proletários" ou de socialistas impunha contra aquilo a que os comunistas apelidavam de "inimigos".

E por isso, pela substituição (e supressão agressiva!) do direito à diferença pelo dever de igualdade, se conseguiu fazer viver pacificamente estes três povos durante todo o tempo em que o Regime vigorou. O método para impor tal quimera, como já foi citado, foi o dictatorial - que de resto, conhecendo outros nomes e suprimindo autonomias nacionalistas, também resultou aquando da ocupação desta região europeia pelo Império Otomano, e depois, pelo Império Austro-Húngaro (que aliás, viria a conhecer o seu fim graças a um incidente passado em Sarajevo, que iria despoletar o conflito mundial que poria termo ao mesmo Estado). Certo é que a paz entre os povos foi duradoura e enriquecedora culturalmente para a região, enquanto os regimes dictatoriais que exerciam domínio territorial sobre esta região se sucediam.

É, portanto, na queda do último dos regimes autocráticos, o Comunista, forjado por Tito, que se despoleta a imensa guerra nos Balcãs, que envolveu diversos países (quase todos os dos Balcãs), e as identidades nacionais que os compõem. Foi, sem dúvida, o ruir da última quimera, não porque a quimera em si fosse destruída, mas sim porque o poder que outrora a impunha se esvaziou, se desmembrou, perdendo força e extinguindo-se, enfim, que fez recrudescer as diferenças entre os vários povos, despertar sentimentos nacionalistas e de independência, levando à independência sucessiva das anteriores Repúblicas Socialistas que compunham a Federação Jugoslava (primeiro a Eslovénia, depois a Croácia, que teria que passar por uma acérrima Guerra da Independência, o mesmo se passando com a Bósnia-Herzegovina), e avivar o lume aos extremismos religiosos praticados ao abrigo das diferenças culturais e religiosas, consubstanciadas mais nas tradições das Igrejas do que no credo, em si.

A afirmação de identidades diferentes, e o direito à mesma, que nasceram com a penetração do sentimento idealista democrata dentro da até então enclausurada e reprimida Jugoslávia Comunista, acaba por ser, paradoxalmente, uma das causas dos conflitos que se vieram depois desenvolver. Podemos aqui estabelecer um paralelo crítico com Portugal, de papel-químico, até; tal como em Portugal, como consequência de cerca de 40 anos de Estado Novo, o povo não sabe, ainda hoje, em muitos aspectos na vida cívica e mesmo na vida pessoal/familiar e quotidiana, agir em democracia - não sabe harmonizar nem pesar os valores em causa, e numa democracia, exige-se que o povo tenha essa preparação intelectual ou pelo menos empírica para poder exercer os seus direitos, e cumprir os seus deveres, pelo que, quando ela não existe, por ter sido tolhida por uma educação que durante gerações, preparou o seu povo para, simples e roboticamente, obedecer, ela jamais pode ser bem exercida. Ora, semelhante coisa acontece com os Balcãs, mas especialmente, na Bósnia e Herzegovina, ainda que também na Croácia, embora em menor escala, e mais recentemente, na Sérvia, Montenegro e Kosovo, onde a única diferença, quando comparado com o caso Português, foi a especial brutalidade a que chegaram os excessos cometidos ao abrigo dos nacionalismos e das diferenças culturais e religiosas.

Assim, hoje em dia, a Bósnia e Herzegovina é um país dividido. É um país cuja população se encontra dividida pelas identidades nacionais, étnicas, culturais e religiosas que a compõem. É um país em que não existem pessoas que afirmem "I'm Bosnian-Herzegovinian" (num inglês macarrónico, pois tal nacionalidade nem se pode dizer que exista...), antes afirmando "I'm a croat", "I'm a serb" ou antes "I'm bosniak". É uma nacionalidade fictícia, composta por uma das três acima referidas. Na BiH, não temos ninguém a não ser os Croatas (Católicos), predominantemente instalados na parte oeste da região da Herzegovina (que foi a que visitei), os Bósnios, ou Bosniaks (muçulmanos), dispersos pelo território da Federação, e os Sérvios (Ortodoxos), de etnia eslava, concentrados principalmente em zonas territoriais da BiH mais ou menos vastas que fazem fronteira com a antiga Sérvia e Montenegro, merecendo, dentro da própria Federação da BiH, uma República Sérvia autónoma, como resultado dos acordos de Dayton, que estabeleceram o final do conflito de 1992-95.

Impressionou-me chegar a Međugorje e constatar que, ao invés de bandeiras da Federação da BiH hasteadas nas ruas, o que antes viamos eram bandeiras da antiga República Croata da Herzeg-Bósnia - uma pretensa nação constituída na região Oeste da Herzegovina, durante a guerra de 1992-95, composta pela população croata maioritária existente na mesma região, com capital em Mostar, agora integrada num cantão da Federação com o mesmo nome, que mantém a maioria croata-católica. As pessoas são frias, calejadas pela dureza da guerra e pelos pesadelos herdados desta. Mostar é uma cidade compartimentada em três bairros - o mais abrangente, o croata, que perfaz 53% da população da mesma cidade, seguindo-se o muçulmano, e depois, numa pequeníssima minoria, o bairro sérvio ortodoxo. Dificilmente vemos um bósnio cumprimentando ou tomando um café com um croata, ou um sérvio dando palmadinhas nas costas de um croata.

Mostar é, pois, uma cidade rica em culturas - ali, vemos diversas mesquitas, no bairro turco, muitas mais Igrejas, no bairro croata-católico, e umas quantas Igrejas ortodoxas, no bairro sérvio, mas jamais veremos as populações convivendo amenamente, como aconteceria em qualquer outro país em que o rasto de sangue que a guerra imprime não tenha passado. Mais do que tudo, a Bósnia e Herzegovina é um ensinamento para todos os países do globo que sejam compostos por diversas etnias, divididas pelas religiões, culturas e tradições abissalmente diferentes que as componham - e ainda, um ensinamento do quão perigosa pode ser a democracia liberal quando os povos não estejam preparados para a exercer, v.g., o exemplo bem recente do Iraque, no Médio-Oriente, após a libertação dos EUA.

Não obstante, tudo isto me atraiu - e pese embora a frieza da população autóctone seja evidente, um pouco do calor latino que emana de Portugal, país de brandos costumes, chegou para abrir os corações e as almas das gentes daquelas terras à nossa passagem. Espero, em meu nome, e de todos os que me acompanharam na viagem, que tenhamos contribuído para revolucionar, de certo modo, as formas de viver, de pensar, e de agir das pessoas com quem contactámos, na esperança de construir para a BiH um futuro melhor - futuro que só pode ser construído se as mentalidades se abrirem à tolerância e, acima de tudo, ao amor de Cristo, que nos une.
 

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