Vicarious Liability
sexta-feira, agosto 18, 2006
  Marcello Caetano, o homem depois do Regime


Marcelo José das Neves Alves Caetano nasceu em Lisboa a 17 de Agosto de 1906 e faleceu exilado no Rio de Janeiro em 26 de Outubro de 1980.

Conservador, monárquico e integralista desde os tempos do Liceu, colaborou em vários periódicos que perfilhavam esta orientação ideológico-programática, chegando mesmo a dirigir a revista Ordem Nova, publicação auto-assumida como “antiliberal, antidemocrática, anticapitalista, anticomunista, antitotalitária e antimaçónica” .

Aos 16 anos ingressa na Faculdade de Direito de Lisboa. Aí conclui o curso de licenciatura em 1927 e quatro anos mais tarde o Doutoramento (portanto, com apenas 25 anos!) em Direito Público, área em que se tornaria um especialista de renome.

Em 1933, ano em que é nomeado, por concurso, Professor daquela Universidade, começa a trabalhar como assessor do Ministério das Finanças, pasta ainda a cargo do Presidente do Conselho de Ministros, Oliveira Salazar. Contudo, o primeiro cargo político importante que lhe é atribuído no seio do «Estado Novo», seria o de Comissário Nacional da Mocidade Portuguesa, organização encarregue de arreigar a juventude à ideologia do Regime, à qual dará uma orientação menos pré-militar e mais afastada do modelo desenvolvido pelo Fascismo Italiano.

A entrada no Governo, controlado de perto pela figura do Presidente do Conselho, viria apenas acontecer em 1944, tutelando primeiro a pasta das Colónias e posteriormente a da Presidência, esta última que acumula durante algum tempo com a chefia da diplomacia portuguesa. Entretanto, tinha já presidido à Comissão Executiva da União Nacional e à Câmara Corporativa, organismo que espelhava uma das principais facetas da ideologia política Salazarista.

Na sequência da crise de 1958, marcada pelo afastamento de Craveiro Lopes da Presidência da República – em dissidência com Salazar – e pela candidatura de Humberto Delgado à Chefia do Estado, Marcello Caetano é exonerado do Governo e afasta-se da vida pública, pedindo escusa do lugar de Conselheiro de Estado vitalício e jurando nunca mais voltar.

Dedica-se então inteiramente à Universidade e a cuidar da esposa, que adoecera gravemente, actividades que acumula com o trabalho de jurisconsulto, de onde lhe provinham os rendimentos necessários para fazer face à sua delicada situação familiar.

Mas o rumo dos acontecimentos viria a surpreender as suas convicções iniciais! Assim, quando em Setembro de 1968 Salazar sofre um acidente que o impossibilita de continuar a exercer as funções de Presidente do Conselho, o nome de Marcello Caetano começa a ser frequentemente citado para lhe suceder no cargo, despoletando uma onda de apoios de algumas personalidades mais influentes do Regime e a curiosidade da comunicação social nacional e estrangeira.

É então convidado pelo Presidente da República, Américo Thomás, a tomar parte na reunião do Conselho de Estado onde se discutiria a situação política do país. Das três hipóteses colocadas para a solução do problema causado pela incapacidade de Salazar, o Chefe de Estado opta pela exoneração do histórico Presidente do Conselho (ainda que penosamente) e anuncia que ouvirá individualmente cada um dos conselheiros com o intuito de encontrar a personalidade que reunisse os requisitos necessários para assumir o lugar.

Quando finalmente Caetano é chamado para a audiência em Belém, Américo Thomás não solicita o seu conselho, antes lhe apresenta formalmente o convite, garantindo que o seu nome fora apontado pela esmagadora maioria das personalidades que ouvira.

Inicialmente relutante em regressar ao exercício de funções políticas– no decénio que decorrera desde a sua exoneração do cargo de Ministro da Presidência, fora apenas Reitor da Universidade de Lisboa, actividade que no entanto não se aproximava em nada das responsabilidades de Estado - , acaba por aceitar “servir mais uma vez o país” (*) e é empossado em 27 de Setembro desse ano, depois do Presidente da República, no exercício das faculdades que a Constituição lhe conferia, ter exonerado Salazar, mantendo-lhe no entanto todas as prerrogativas inerentes ao cargo.

No curto discurso que profere em S. Bento após a cerimónia, enaltece o chefe de Governo cessante e lembra que o país, habituado a ter no seu comando uma “figura de excepção”, deveria agora adaptar-se à ideia de ser governado “por homens normais”! O clima de devoção a Salazar era inquestionável, criticá-lo seria quase um sacrilégio, mas ainda assim, o novo Presidente do Conselho, apostado na «renovação na continuidade», garante: “a fidelidade à doutrina brilhantemente ensinada pelo Dr. Salazar, não pode, nem deve confundir-se com o apego obstinado a formas ou soluções que ele algum dia haja adoptado”. Nada impediria pois o governo de “proceder, sempre que oportuno, às reformas necessárias”!(**)

Com efeito, é com total entusiasmo que Marcello Caetano começa a desempenhar a tarefa que lhe fora confiada. O governo reunia quase na totalidade os Ministros de Salazar, mas mudara a liderança, por isso, a orientação era nitidamente mais liberal, e de imediato se fez sentir a dinâmica reformista, que justifica o epíteto de “Primavera Marcelista” dado aos primeiros anos do seu “mandato”: a polícia política (agora DGS) diminui a sua acção repressiva, passando-se o mesmo com a Censura; paralelamente são autorizados a regressar a Portugal alguns exilados políticos (entre eles o advogado Mário Soares, D. António Ferreira Gomes, bispo do Porto, e alguns comunistas confessos) e legalizados certos movimentos políticos não comunistas, que também têm autorização para se reunir em congressos e concorrer a eleições. Importante é ainda a reforma Democrática do Ensino (com o consequente desanuviamento da inculcação da ideologia do Regime nos primeiros patamares da Instrução Pública) erigida pelo Ministro Veiga Simão, e abertura da “União Nacional” (agora Acção Nacional Popular) a novas sensibilidades políticas, com o aparecimento da chamada “Ala Liberal” na Assembleia Nacional, composta por um conjunto de jovens deputados defensores da liberalização do Regime. Mas, apesar de mudar a concepção ideológica da colonização branca (que deixa de ser vista como uma “missão histórica e civilizacional”, como o era por Salazar) e de se admitir uma ligeira autonomia das províncias ultramarinas, o problema da Guerra Colonial persiste, e vai ganhado terreno a ideia da “solução política” (não acolhida pelo Regime). As forças armadas dão os primeiros sinais de desconforto, que em breve daria lugar à revolta, e o próprio Presidente do Conselho admite que a luta armada não se poderia prolongar muito mais! (“ (…) defenderemos o Ultramar enquanto poder ser!”).

Mas os primeiros sinais positivos, que deixavam antever a possibilidade de uma transição pacífica para a Democracia, rapidamente são contraditados pela persistência das linhas de força do Autoritarismo, e pelo recrudescer da repressão: o movimento de contestação estudantil de 1969 (inspirado por ideologias de esquerda e animado pelo Maio de 68 Francês) é objecto de uma pesada repressão policial, que se estende a várias manifestações de rua promovidas no sector laboral; a CDE e a CEUD, passam a ser controladas mais atentamente pela polícia política, e os seus principais dirigentes são perseguidos, presos ou obrigados a partir para o exílio; a Assembleia Nacional, dominada na íntegra por deputados afectos ao Regime, é o espelho de sucessivos sufrágios fraudulentos, e, os deputados da «Ala Liberal», silenciados pela “maioria situacionista”, acabam por ser obrigados a renunciar ao mandato. Além disso, aumentou-se a vigilância nas universidades, para evitar novos tumultos, proibindo-se as associações de estudantes e registando-se várias invasões de Academias por soldados da polícia de elite (conhecidos como “os gorilas"), sempre que havia suspeitas da preparação de alguma acção de protesto. Tudo isto é acompanhado pelo drama da Guerra Colonial e pela crise económica associada aos choques petrolíferos dos anos 70, ditando medidas de maior austeridade. Numa palavra: a «Primavera Marcelista» parecia ter deixado cair a “renovação” para apostar apenas na “continuidade”!

A 25 de Abril de 1974, depois do malogrado golpe das Caldas, o Estado Novo é derrubado pela acção militar do MFA. Marcello Caetano, que era por esta altura um homem decaído, desiludido e ultrapassado pelas circunstâncias, passa algumas horas de agonia no quartel da GNR no Largo do Carmo, cercado pelas tropas comandas por Salgueiro Maia. Apresenta a rendição ao fim do dia, apenas a um “oficial de patente superior” e exige abandonar o edifício de “forma digna” e “pela porta da frente, por onde tinha entrado”, no que não é atendido por questões de segurança. Detido em seguida, não o sujeitam a qualquer tipo de tratamento cruel ou degradante e é enviado primeiro para a Madeira e posteriormente para o Brasil, onde permanece exilado até à data da sua morte.

Aí se dedica a escrever as suas memórias, com especial destaque para os cinco anos e meio em que presidiu ao governo português, apresentando-nos uma “outra perspectiva” sobre o 25 de Abril e a decadência do Estado Novo, frequentemente esquecida, apesar de tal posição em nada abonar a favor da verdade e do rigor da ciência histórica. No campo do Direito, desenvolve o trabalho que é possível com o distanciamento de certas fontes, doando parte significativa do seu espólio académico e intelectual a universidades brasileiras.

Em vida, considerou-se sempre mais realizado no mundo universitário que na política, e, na verdade, o seu percurso como brilhante académico e exímio iuspublicista, fornece-nos um argumento importante a favor desta posição.

A sua bibliografia extensa, abarca diversos ramos do Direito Público, do Direito Constitucional e da Ciência Política ao Direito Administrativo (onde se distinguiu como o principal mentor do Direito Administrativo Português Moderno e autor do projecto do Código Administrativo de 1934, onde perpassa uma concepção de Administração Pública legal e sujeita ao contencioso) com uma importante passagem pela Iushistoriografia portuguesa (onde se dedicou ao estudo dos principais institutos jurídicos da realeza medieval, com destaque para as “Cortes”, tema onde a sua doutrina ainda hoje é frequentemente citada), sendo também um dos primeiros divulgadores, em Portugal, da concepção normativista do Estado e do Direito, de Hanz Kelsen.

Na cena política, a sua passagem pela Presidência do Conselho de Ministros, no período final da Ditadura, tem motivado frequentemente uma discussão doutrinária, cujo epicentro se situa na questão de saber qual a amplitude da dinâmica reformista que desejava imprimir ao Regime quando tomou posse. Procuraria a Democracia? Quereria apenas uma Ditadura Civil, sujeita ao Direito e mais “aberta”? Ou era cegamente leal à herança salazarista, ao ponto das alterações que promoveu não terem passado duma diferença de “estilo” em relação ao seu antecessor?

É difícil responder de forma unívoca e sem provocar polémica. Contudo, não nos parece ser difícil de admitir, pelo menos como ponto de partida, que a sua a actuação se revelou desde o início constrangida por certos factores, redutores da liberdade de decisão: a normalidade constitucional com que se processou a sucessão apontava para o respeito pela própria Constituição e o seu projecto de Estado e de Direito, ou, no limite, pela Constituição Material; é inegável que o aparelho repressivo do Regime “pré-existia” à sua entrada para tão altas funções, e estava de tal modo disseminado e investido de poder, que seria difícil a um homem (ou a um governo), por mais firme que fosse, controlar na totalidade a sua actuação ou impor-lhe regras de procedimento radicalmente diferentes das que conhecia; ao contrário de Salazar, idolatrado reverencialmente, Marcello Caetano não criou um regime à sua medida, centrado na sua figura, antes teve de se impor a um Regime já criado, dentro do qual conheceu apoiantes e opositores (como sempre acontece sempre que se disputa o poder); por fim, também parece óbvio que esse Regime, munido de uma coerência própria, que houvera feito a sua história e forjado as suas “elites”, não estava disposto a aceitar sem resistência que qualquer novo líder estende-se os intentos reformistas para além de certos “limites”, pretendesse refundá-lo.

A isto pode obstar-se que a orientação político-ideológica de Marcello Caetano, revelada desde a juventude, o conservadorismo patente no seu modo de agir e modelador da educação a que fora sujeito, e o percurso político que fizera dentro do «Estado Novo», transformaram-no num “homem do sistema”, que comungava perfeitamente da sua tradição e não tinha interesse algum em alterá-lo se não pontualmente. Ainda assim, não parece de desprezar o facto de, o desânimo e o desencanto que o acompanharam nos últimos tempo de exercício de funções, denunciarem claramente que muito do que desejara fazer não fora possível (independentemente do que esse “muito”possa significar).
----
(*) op. cit. CAETANO, Marcello, Depoimento, Record, Rio de Janeiro: 1974.
(**)op. cit, CAETANO, Marcello, «Discurso de Posse como Presidente do Conselho de Ministros», 27 de Setembro de 1968, in Pelo Futuro de Portugal.
 
Comentários:
Qual é que é mesmo a Faculdade dele? Pois é... FDL! FDL sempre!
 
Conservador, Monárquico, Integralista, Anti-democrata, Anti-totalitário, Anti-liberal, Anti-comunista, Anti-capitalista, Anti-Maçónico. Apenas acrescento Católico devoto, e eis que teço uma plena comparação político-ideológica do Prof. Marcello Caetano com a minha própria delineação Político-ideológica. Que Homem, que Força, que admiração teço por ele. Qualquer aluno da FDL devia estar orgulhoso de ter semelhante personalidade histórica e política incluída e intrincada na história da nossa tão amada e gloriosa FDL.

Ad astra per aspera, Marcello Caetano.
 
Parece ter sido um homem (quase) completo, muito versátil, um brilhante aluno, brilhante professor e escritor!
Pena que não tenha podido governar, como possivelmente planeou antes de entrar para o governo!
Agradeço o retrato do homem que aqui foi colocada à nossa disposição!
Marianne
 
Gran amigo del profesor don Laureano López Rodo
 
Grande herói, um dos grandes do século XX Português. Portugal não esqueceu.
 
Enviar um comentário



<< Home

Arquivos
  • julho 2006
  • agosto 2006
  • setembro 2006
  • outubro 2006
  • novembro 2006
  • dezembro 2006
  • janeiro 2007
  • fevereiro 2007
  • março 2007
  • abril 2007
  • maio 2007
  • junho 2007
  • julho 2007
  • agosto 2007
  • setembro 2007
  • outubro 2007
  • novembro 2007
  • janeiro 2008
  • fevereiro 2008
  • março 2008
  • abril 2008
  • junho 2008
  • julho 2008
  • agosto 2008
  • setembro 2008
  • outubro 2008
  • novembro 2008
  • dezembro 2008
  • junho 2009
  • Powered by Blogger