A Apologia da Crise
Os tempos de crise costumam ser adversos para uma pessoa comum, mas há quem não entenda assim e, apesar das dificuldades que conhece, procure sempre pior.
Vão nessa linha as declarações despropositadas e inconsequentes de Ramalho Eanes e Joaquim Aguiar, tornadas públicas esta semana a propósito da confirmação parlamentar do Estatuto Político-Administrativo dos Açores, que tinha sido objecto de veto político do Presidente da República.
Parece que não lhes bastava a económica, tinham que vir fazer a apologia da crise política. Eanes, ex-Presidente, que não entende o sinal dos tempos, e cristalizou a sua leitura dos poderes Presidenciais num período anterior à Revisão Constitucional de 82 – propositadamente feita para lhe tirar poder –sugere, no auge da insensatez, que, não fosse a crise económica, Cavaco deveria dissolver o Parlamento por este confirmar um decreto que ele havia vetado.
Aguiar, por seu turno, antevê uma crise generalizada para 2009, quando o TC se pronunciar sobre o pedido de fiscalização sucessiva da inconstitucionalidade do Estatuto (feito pelo PSD) de que só se poderia sair por via radical: ou o Chefe de Estado teria que renunciar ao cargo, se o tribunal concluísse pela não inconstitucionalidade, ou a legitimidade política da AR e do Governo estavam irreversivelmente feridas se o entendimento fosse o contrário.
Não é que devamos valorizar excessivamente delírios – pois é isso que são estas declarações absurdas. A questão é que eles não seriam de esperar, senão de quem não conheça bem o nosso Regime constitucional, ou conhecendo-o, não resista a um sound-byte para chamar sobre si as atenções mediáticas. O que não corresponde exactamente ao perfil dos seus autores (um ex-Chefe de Estado e um ex- assessor político do actual Presidente).
Resta lembrar, para quem se deixe embalar na onda do disparate, que a confirmação do veto político é uma solução compromissória consagrada pela Constituição, para harmonizar a legitimidade democrática de dois órgãos directamente eleitos (Presidente e Parlamento), quando tenham visões antagónicas sobre uma questão de relevo: em princípio, a leitura do Presidente, materializada no veto político, deve prevalecer por ser o Chefe de Estado. Mas, quando se debata com uma maioria parlamentar sólida (como aconteceu neste caso, em que a maioria de confirmação foi de 2/3 dos Deputados) entende-se que deve ser esta a prevalecer, porque o Corpo Legislativo dispõe igualmente de legitimidade Democrática e representa directamente os cidadãos eleitores, no voto dos quais funda o seu poder.
É um sistema de equilíbrios e limites recíprocos, de checks and balances, como ensina o Constitucionalismo norte-americano. Não difícil de entender para quem não tenha uma propensão natural para o disparate, ou deseje ser mediaticamente notado acima de tudo, mesmo que tenha que pagar o preço de ser incoerente.
De resto, este exercício de equilíbrio é típico dos períodos de coabitação como o que vivemos agora, e ficou bem conhecido dos Portugueses de 1991 a 95 (no tempo da coabitação Soares-Cavaco) quando foi generalizadamente utilizado sem nunca conduzir a um desfecho radical.
Naturalmente que depois disto não pode esperar-se que a relação institucional entre Belém e S. Bento seja um idílio de apaixonados. Mas também ninguém e ingénuo ao ponto de acreditar que assim seria para sempre.