Vicarious Liability
sexta-feira, junho 13, 2008
  O Tratado que morreu antes de nascer
Chamados às urnas, os cidadãos irlandeses – os únicos cidadãos europeus consultados oficialmente sobre a integração europeia – rejeitaram, ontem, por maioria considerável, a ratificação do Tratado de Lisboa, na versão adopta na CIG de Dezembro de 2007, durante a Presidência portuguesa do Conselho.

Há muito que se especulava sobre esta possibilidade, tornada perigosamente mais provável quando foram conhecidas as primeiras projecções sobre o número de votantes – tal como aconteceu no primeiro referendo ao Tratado de Nice, a elevada abstenção era apontada como terreno favorável à vitória do «não», como, de facto, veio a acontecer – mas das principais instituições políticas da União, aos dirigentes dos Estados-Membros – maxime dos mais directamente envolvidos na preparação do Tratado – emergia um silêncio de sepulcro. O silêncio contraditório dos momentos de dúvida, que pretendendo transmitir confiança, só amplifica a insegurança e os receios de um malogro próximo.

Pela segunda vez a União Europeia vê, graças a um referendo, abortadas as possibilidades de “dar um passo maior que as pernas”, avançando para uma experiência de integração política mais aprofundada, ajustada nos bastidores das conferências intergovernamentais, e mantida, no limiar do constitucionalmente possível, à revelia dos cidadãos, sinal evidente de receio de um desfecho menos feliz para o projecto arrojado, como o que hoje será anunciado.

Já aqui escrevia várias vezes que a Europa não podia avançar de costas voltadas para as pessoas, às escondidas, definida nos bastidores. A Europa dos gabinetes e das diplomacias paralelas, das fotos de família em Bruxelas, a Europa que para os cidadãos em geral (e em particular para os portugueses, onde o desconhecimento de certas matérias é um luxo raro para a boa reputação no grupo) é uma imensa massa de desconhecido, está condenada ao fracasso, como por duas vezes ficou demonstrado, de forma bastante evidente.

Tal como aconteceu com Nice, esta rejeição pode não significar liminarmente o fim do Tratado de Lisboa, ou, pelo menos, do seu projecto fundamental – que não é, de resto, muito diferente do apresentado há três anos, sob o epíteto ambicioso de Constituição Europeia. Mas é um convite indeclinável à reflexão, que os EM não devem desperdiçar. A uma reflexão profunda, conducente a alternativas e não a meras alternâncias. A uma reflexão honesta, em que se procurem diagnosticar os verdadeiros problemas (o divórcio entre os cidadãos e a Europa) do processo, para debelá-las, e não arranjar estratagemas para contorná-los.

A integração não pode, nem deve ficar por aqui. Mas, de uma vez por todas, tem que fazer doutro modo. Com as pessoas e não nas suas costas. Com informação e não com demagogia nem manipulação. Com debate sério e não aproveitando-se as questões europeias para se discutir as chicanas da política nacional.

Esse processo de integração, sólido, leal, será certamente lento demais para as ambições políticas dos actuais dirigentes europeus (que procuram, muito justamente, êxitos para acrescentar ao currículo). Mas é o único que nos garantirá que vamos dar passos firmes, de cabeça erguida, sem o espectro de um fracasso predestinado, que, de repente, caia sobre nós condenando todos os esforços à ruína.

P.S – E quem, como eu, se preparava para, na próxima sexta, discorrer sobre o Tratado de Lisboa na de união europeia, é melhor que repense os seus projectos, avaliando se os mesmos não estão condenados a uma «inutilidade superveniente».

 
Comentários:
Pois é, meu caro Ricardo, concordo plenamente contigo.
E digo mais, estou contente com este NÃO!
E acrescento ainda: ter direito a abortar é um direito adquirido("morreu antes de nascer"!)LOL!
Marianne
 
Olá, tudo bem? Era previsível o desfecho do referendo... Quanto ao facto de a europa viver de costas voltadas para os cidadãos é, na minha opinião, uma consequência natural da falta de interesse das pessoas.Se as pessoas não se interessam pela política a nível interno... muito menos interesse há a nível comunitário. Nós que tivemos um ano inteiro de DTO da União temos dificuldade em compreender a dimensão da questão. Por isso tenho dúvidas que as pessos se interessassem mais apenas pelo facto de haver mais informação.
 
Bom post. Tenho apenas a acrescentar o seguinte: a principal diferença entre Irlanda e Portugal, ou Inglaterra e Portugal, entre outros exemplos, é o facto desses países europeus mais desenvolvidos não terem uma população que se limita a olhar para o próprio umbigo e a apoiar sempre os sindicatos - sem saber os porquês e quais os objectivos concretos -, mas terem sim uma população instruída na generalidade e que sabe agir tendo em vista o futuro e não apenas o presente.
 
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