O Tratado que morreu antes de nascer
Chamados às urnas, os cidadãos irlandeses – os únicos cidadãos europeus consultados oficialmente sobre a integração europeia – rejeitaram, ontem, por maioria considerável, a ratificação do Tratado de Lisboa, na versão adopta na CIG de Dezembro de 2007, durante a Presidência portuguesa do Conselho.
Há muito que se especulava sobre esta possibilidade, tornada perigosamente mais provável quando foram conhecidas as primeiras projecções sobre o número de votantes – tal como aconteceu no primeiro referendo ao Tratado de Nice, a elevada abstenção era apontada como terreno favorável à vitória do «não», como, de facto, veio a acontecer – mas das principais instituições políticas da União, aos dirigentes dos Estados-Membros – maxime dos mais directamente envolvidos na preparação do Tratado – emergia um silêncio de sepulcro. O silêncio contraditório dos momentos de dúvida, que pretendendo transmitir confiança, só amplifica a insegurança e os receios de um malogro próximo.
Pela segunda vez a União Europeia vê, graças a um referendo, abortadas as possibilidades de “dar um passo maior que as pernas”, avançando para uma experiência de integração política mais aprofundada, ajustada nos bastidores das conferências intergovernamentais, e mantida, no limiar do constitucionalmente possível, à revelia dos cidadãos, sinal evidente de receio de um desfecho menos feliz para o projecto arrojado, como o que hoje será anunciado.
Já aqui escrevia várias vezes que a Europa não podia avançar de costas voltadas para as pessoas, às escondidas, definida nos bastidores. A Europa dos gabinetes e das diplomacias paralelas, das fotos de família em Bruxelas, a Europa que para os cidadãos em geral (e em particular para os portugueses, onde o desconhecimento de certas matérias é um luxo raro para a boa reputação no grupo) é uma imensa massa de desconhecido, está condenada ao fracasso, como por duas vezes ficou demonstrado, de forma bastante evidente.
Tal como aconteceu com Nice, esta rejeição pode não significar liminarmente o fim do Tratado de Lisboa, ou, pelo menos, do seu projecto fundamental – que não é, de resto, muito diferente do apresentado há três anos, sob o epíteto ambicioso de Constituição Europeia. Mas é um convite indeclinável à reflexão, que os EM não devem desperdiçar. A uma reflexão profunda, conducente a alternativas e não a meras alternâncias. A uma reflexão honesta, em que se procurem diagnosticar os verdadeiros problemas (o divórcio entre os cidadãos e a Europa) do processo, para debelá-las, e não arranjar estratagemas para contorná-los.
A integração não pode, nem deve ficar por aqui. Mas, de uma vez por todas, tem que fazer doutro modo. Com as pessoas e não nas suas costas. Com informação e não com demagogia nem manipulação. Com debate sério e não aproveitando-se as questões europeias para se discutir as chicanas da política nacional.
Esse processo de integração, sólido, leal, será certamente lento demais para as ambições políticas dos actuais dirigentes europeus (que procuram, muito justamente, êxitos para acrescentar ao currículo). Mas é o único que nos garantirá que vamos dar passos firmes, de cabeça erguida, sem o espectro de um fracasso predestinado, que, de repente, caia sobre nós condenando todos os esforços à ruína.
P.S – E quem, como eu, se preparava para, na próxima sexta, discorrer sobre o Tratado de Lisboa na de união europeia, é melhor que repense os seus projectos, avaliando se os mesmos não estão condenados a uma «inutilidade superveniente».