Vicarious Liability
segunda-feira, fevereiro 12, 2007
  Foi nisto que (não) votámos
Aviso: este post não contém referências religiosas, não tem tanta piada como os do André, nem demonstra o desalento emotivo justificado nos do Diogo, muito menos o rigor e sobriedade dos do Ricardo. Não deixa de ser, contudo, demasiado longo.

No referendo ganhou quem merecia, a abstenção, no primeiro escrutínio em que eu nem contribuí para tal. Se tivesse tanta certeza sobre os números do euromilhões como sempre tive a certeza de que este referendo não ia ser vinculativo, estaria a escrever isto ao mesmo tempo que uma linda mulher me massajava as costas, num bungalow no mar límpido das Caraíbas, depois de uma cansativa viagem no meu jacto particular… ou então nem queria saber do blog. Quanto ao maior número de votos do sim sobre o não pouco importa, primeiro porque a lei iria sempre surgir, mais tarde ou mais cedo, e depois porque tenho cada vez mais a ideia de que muita coisa vai ficar na mesma com uma mudança da lei penal nestes moldes (não me apetece falar sobre isso por enquanto, fica a ideia).

Uma das coisas que me inquieta nestas situações, e de certeza não fui o único a ter este sentimento, é o milagre da multiplicação de movimentos contra e a favor, e consequentemente o milagre da multiplicação de subsídios para os mesmos. Além dos partidos, foram ao nosso bolso dezanove grupos de cidadãos eleitores, cujos nomes e contactos estão no site da Comissão Nacional de Eleições. Resolvi, então, analisar em pormenor um de cada lado da barricada.

Plataforma “Não Obrigada”:
Como o próprio nome indica é uma plataforma; e, como é a favor do não, resolvi ler o dicionário mais arcaico que encontrei. Foi numa edição do Círculo de Leitores de 1985 que li, entre outras, as seguintes definições para o substantivo feminino plataforma: “construção de terra ou de madeira sobre que se assentam quaisquer objectos pesados” (a menos que tal construção seja o cadafalso, e os objectos pesados as criminosas que abortaram, não me parece que tenham querido dizer isto); parte elevada, à altura da carruagens, nas estações dos comboios, para facilitar a entrada e saída de passageiros (com um orçamento de 427735 € não acredito que tenham andado muito de comboio, mesmo que os bilhetes não sejam muito baratos).
Aqui está uma definição que pode servir: “proposta ou medida conciliatória procurando uma solução para pontos de vista ou interesses diferentes”; esta sim, pode descrever um movimento que se quer moderado, disposto a ouvir as duas partes e escolher argumentos razoáveis para mostrar o seu ponto de vista, que será necessariamente eclético. Não servirá, no entanto, para caracterizar um movimento que utiliza como um dos principais argumentos o “não pago impostos para abortos” (eu também não quero pagar impostos pelo Benfica e tenho que os pagar, porque assim decidiu o Governo de Durão Barroso).

Em Movimento Pelo Sim, Interrupção voluntária da gravidez – A Mulher decide, a Sociedade respeita, o Estado garante:
Este é o meu preferido, com um nome tão grande que só é ultrapassado pelo de D. Duarte e sua prole, mas que tem tanto de grande como de estúpido. A parte que menos discuto é “em movimento”, porque devem ter ido passear a algum lado durante a campanha, até porque são pagos para isso. A parte da “interrupção voluntária da gravidez” já levanta algumas questões, não tanto a voluntariedade, mas mais o eufemismo “interrupção”, porque o aborto não é um acto em que se “interrompe” mas sim em que se “termina definitivamente” a gravidez; mas como é uma expressão mais bonita que “aborto” e está generalizada, usem-na à vontade.
“A mulher decide” já me causa mais estranheza, porque da última vez que ouvi falar do assunto é preciso também um homem para surgir um feto, e, se este nasce, esse homem é obrigado a assumir todos os compromissos legais, com ou sem o seu consentimento, até ao resto da vida, logo que se prove que é o pai. Seguindo a lógica, pode a ex-futura mãe simplesmente renunciar à maternidade mesmo antes dela existir, com ou sem consentimento do pai da criança?
“A sociedade respeita” é de facto muito bonito, mas estamos a falar da mesma sociedade que não respeita as leis que existem, qual é a garantia de respeito pelas que virão?
E a cereja no topo do bolo: “o Estado garante”. Estamos a falar do Estado português, que deve mais aos particulares do que os particulares lhe devem e que já não é pouco. O mesmo que na Constituição tem, por exemplo no artigo 65º nº1, “todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto (…)” e nunca passou pela cabeça de ninguém que uma família carenciada com oito filhos, a viver num T0, possa exigir uma casa com dez assoalhadas e empregada de limpeza, tudo por conta do Estado.

Para finalizar, pergunta de casa: porque será que os movimentos “Juntos pela Vida” e “Diz que não” têm a sede exactamente na mesma morada, no concelho de Isaltino (ex-Concelho de Oeiras), mais concretamente em Linda-a-Velha?
Hipótese A: para ter o dobro do trabalho.
Hipótese B: para ter o dobro da receita.

 
Comentários:
Gostei do texto!
Mas adorei o 1.º e o último parágrafo!
Parabéns pelo teu texto!
Marianne
 
Já fazia falta um texto destes no blog, para comprovar o bom trabalho.
 
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