Referendos; os que faziam realmente falta, e os que nunca deveriam sequer existir
Já há muito tempo que não fazia uma análise crítica à política do nosso país, às más opções e estabelecimentos de prioridades legislativas das bancadas parlamentares dos dois maiores partidos políticos de Portugal, entre outras coisas que de mal temos na ciência e na prática política do nosso jardim à beira-mar plantado, e por isso, num regresso glorioso da sátira política a este blog, trago-vos hoje um tema que à coisa pública ("res publica") certamente interessará. A temática dos referendos.
Em Fevereiro, todos os cidadãos eleitores serão "chamados" (ou pelo menos impelidos, consoante o que deveria ser o seu direito e dever cívico) a votar "sim" ou "não" à despenalização criminal do aborto em referendo, referendo que conheçe já a sua segunda versão, depois da frustração dos intentos socialistas e da esquerda em geral de despenalizar o aborto em 1998, também através da consulta da vontade popular. O que é que há a dizer sobre isto? Simples; uma palhaçada.
Palhaçada, no sentido em que se perderá tempo e dinheiro ao organizar-se uma consulta à vontade popular sob a forma de referendo (a segunda, sublinhe-se) quando parece evidente, segundo as sondagens mais recentes, que tal proposta será de novo recusada pela vontade popular. Cerca de 46% pelo "não", cerca de 29% pelo "sim", e um número massivo de indecisos, que deve rondar os 21%, segundo ouvi dizer num noticiário da RFM. Claro que as sondagens são sempre dúbias, isso já nós o sabemos, e acredito que os noticiados 21% de indecisos acabarão por se "decidir", à medida que nos aproximarmos da data da votação. Por onde é que se vão decidir? Mistério. Isso só saberemos depois da contagem dos votos, mas
a priori, e a julgar pelo esmagador número de movimentos pelo "não" em comparação com os movimentos a favor do "sim", e pelo fabuloso activismo político que os primeiros têm vindo a desenvolver ao longo de todo este tempo, ao qual dou os meus sinceros parabéns, o eleitor sentir-se-á impelido a decidir-se pelo não. Afinal de contas, e numa tirada irónica, a democracia mais não é que o "totalitarismo da maioria". E ainda bem que assim é.
Palhaçada, porque na minha opinião pessoal, não se discute
nem sequer democraticamente um valor essencial como a Vida. As democracias foram feitas precisamente para proteger valores e virtudes como este, e não para permitir a uma turba irracional e passional, mutável e inconstante que os destrua. A liberdade
tem de ter limites, sob pena de um povo se aniquilar a si mesmo; eis porque a anarquia não é, e não será jamais uma alternativa a uma hierarquia de poder, seja ele político, ou social. A realização deste referendo é, portanto, quanto a mim, hedionda e anti-democrática, e se eventualmente se chegar a um resultado positivo a favor do "sim" pela despenalização do aborto, está-se naturalmente a regredir em termos históricos, políticos e sociais, aos tempos do Nazismo e do Estalinismo, tempos em que a bem de um vício pelo poder, se sacrificava a vida de um homem por um pretenso ideal colectivo.
Palhaçada ainda, porque o resultado do referendo pode ser total e absolutamente irrelevante para a posteridade, ainda para mais quando, no último congresso do PS, o Engº José Sócrates deixou bem claro que, acaso a vontade popular fosse contrária à vontade do PS em despenalizar o aborto, não se verificando o carácter vinculativo do referendo depois da contagem dos votos, algo que é previsto pelo n.º 11 do art. 115º da nossa Constituição, o Governo socialista iria legislar sobre a matéria
per si, numa atitude de total desrespeito pelo próprio princípio de participação democrática semi-directa que o instituto do referendo implica, e pela vontade popular demonstrada e consubstanciada pelo mesmo. E o pior é que consegue fazê-lo sem grandes problemas, se verdadeiramente o quiser fazer, graças à maioria absoluta que o povo Português tão amavelmente tratou de oferecer ao Partido Socialista.
Posto tudo isto, coloca-se a questão: se no fundo, isto do referendo é uma mera fachada, um autêntico joguete de marionetes cujo comando cabe ao PS e à sua liderança, faria alguma vez sentido convocar-se o dito cujo referendo? Se mesmo sem o referendo, o Governo conseguiria legislar sobre a despenalização do aborto, qual é o fundamento do mesmo, se se verificarem as condições acima indicadas?
Pelo contrário, talvez fosse mais útil referendar-se uma questão que, por sinal, já tinha sido referendada anteriormente, a par com a despenalização do aborto, que é a da regionalização, e que acaba por dar à costa de novo, com a questão talvez bem mais "de interesse nacional" da Lei das Finanças Locais, e com a necessidade emergente de se remodelar a organização, estrutura, hierarquia e princípios orientadores da Administração Pública, seja a indirecta ou a autónoma/local. É que ao passo que a questão da despenalização do aborto é uma questão de consciência individual, a questão da regionalização é uma questão que poderá requerer, essa sim, uma escolha directa do povo, através do instituto do referendo, a meu parecer.