Vicarious Liability
segunda-feira, janeiro 22, 2007
  Referendos; os que faziam realmente falta, e os que nunca deveriam sequer existir
Já há muito tempo que não fazia uma análise crítica à política do nosso país, às más opções e estabelecimentos de prioridades legislativas das bancadas parlamentares dos dois maiores partidos políticos de Portugal, entre outras coisas que de mal temos na ciência e na prática política do nosso jardim à beira-mar plantado, e por isso, num regresso glorioso da sátira política a este blog, trago-vos hoje um tema que à coisa pública ("res publica") certamente interessará. A temática dos referendos.

Em Fevereiro, todos os cidadãos eleitores serão "chamados" (ou pelo menos impelidos, consoante o que deveria ser o seu direito e dever cívico) a votar "sim" ou "não" à despenalização criminal do aborto em referendo, referendo que conheçe já a sua segunda versão, depois da frustração dos intentos socialistas e da esquerda em geral de despenalizar o aborto em 1998, também através da consulta da vontade popular. O que é que há a dizer sobre isto? Simples; uma palhaçada.

Palhaçada, no sentido em que se perderá tempo e dinheiro ao organizar-se uma consulta à vontade popular sob a forma de referendo (a segunda, sublinhe-se) quando parece evidente, segundo as sondagens mais recentes, que tal proposta será de novo recusada pela vontade popular. Cerca de 46% pelo "não", cerca de 29% pelo "sim", e um número massivo de indecisos, que deve rondar os 21%, segundo ouvi dizer num noticiário da RFM. Claro que as sondagens são sempre dúbias, isso já nós o sabemos, e acredito que os noticiados 21% de indecisos acabarão por se "decidir", à medida que nos aproximarmos da data da votação. Por onde é que se vão decidir? Mistério. Isso só saberemos depois da contagem dos votos, mas a priori, e a julgar pelo esmagador número de movimentos pelo "não" em comparação com os movimentos a favor do "sim", e pelo fabuloso activismo político que os primeiros têm vindo a desenvolver ao longo de todo este tempo, ao qual dou os meus sinceros parabéns, o eleitor sentir-se-á impelido a decidir-se pelo não. Afinal de contas, e numa tirada irónica, a democracia mais não é que o "totalitarismo da maioria". E ainda bem que assim é.

Palhaçada, porque na minha opinião pessoal, não se discute nem sequer democraticamente um valor essencial como a Vida. As democracias foram feitas precisamente para proteger valores e virtudes como este, e não para permitir a uma turba irracional e passional, mutável e inconstante que os destrua. A liberdade tem de ter limites, sob pena de um povo se aniquilar a si mesmo; eis porque a anarquia não é, e não será jamais uma alternativa a uma hierarquia de poder, seja ele político, ou social. A realização deste referendo é, portanto, quanto a mim, hedionda e anti-democrática, e se eventualmente se chegar a um resultado positivo a favor do "sim" pela despenalização do aborto, está-se naturalmente a regredir em termos históricos, políticos e sociais, aos tempos do Nazismo e do Estalinismo, tempos em que a bem de um vício pelo poder, se sacrificava a vida de um homem por um pretenso ideal colectivo.

Palhaçada ainda, porque o resultado do referendo pode ser total e absolutamente irrelevante para a posteridade, ainda para mais quando, no último congresso do PS, o Engº José Sócrates deixou bem claro que, acaso a vontade popular fosse contrária à vontade do PS em despenalizar o aborto, não se verificando o carácter vinculativo do referendo depois da contagem dos votos, algo que é previsto pelo n.º 11 do art. 115º da nossa Constituição, o Governo socialista iria legislar sobre a matéria per si, numa atitude de total desrespeito pelo próprio princípio de participação democrática semi-directa que o instituto do referendo implica, e pela vontade popular demonstrada e consubstanciada pelo mesmo. E o pior é que consegue fazê-lo sem grandes problemas, se verdadeiramente o quiser fazer, graças à maioria absoluta que o povo Português tão amavelmente tratou de oferecer ao Partido Socialista.

Posto tudo isto, coloca-se a questão: se no fundo, isto do referendo é uma mera fachada, um autêntico joguete de marionetes cujo comando cabe ao PS e à sua liderança, faria alguma vez sentido convocar-se o dito cujo referendo? Se mesmo sem o referendo, o Governo conseguiria legislar sobre a despenalização do aborto, qual é o fundamento do mesmo, se se verificarem as condições acima indicadas?

Pelo contrário, talvez fosse mais útil referendar-se uma questão que, por sinal, já tinha sido referendada anteriormente, a par com a despenalização do aborto, que é a da regionalização, e que acaba por dar à costa de novo, com a questão talvez bem mais "de interesse nacional" da Lei das Finanças Locais, e com a necessidade emergente de se remodelar a organização, estrutura, hierarquia e princípios orientadores da Administração Pública, seja a indirecta ou a autónoma/local. É que ao passo que a questão da despenalização do aborto é uma questão de consciência individual, a questão da regionalização é uma questão que poderá requerer, essa sim, uma escolha directa do povo, através do instituto do referendo, a meu parecer.
 
Comentários:
Crime ou não crime? Eis a questão!
Independentemente do que possam pensar, a mulher deve ser dona e soberana do seu próprio corpo: só ela e mais ninguém pode decidir se quer, ou se pode ter mais filhos!
Não se pode tapar o sol com uma peneira: as madamas vão abortar ao estrangeiro onde "passam" férias e as desgraçadas são caluniadas, perseguidas, e condenadas à prisão!
Qual é o problema?
É permitido fumar e eu decido não fumar!
É permitido beber bebidas alcoólicas e eu decido que não as devo beber!
Nas prisões já é permitido a troca de seringas e até já existem (à custa de todos nós) salas de chuto e eu decido ser livre e não me drogar!
Nunca abortei e acho que nunca teria coragem para tal, mas não condeno as mulheres que sofrem ao tomar uma decisão dessas!
Quem tem problemas de consciência, simplesmente não o deve fazer. Quem precisa, seja qual for o motivo deve decidir sem medos!
Neste referendo, só as mulheres deveriam votar! O corpo e o "filho" é delas! O sofrimento também é delas! Ou alguém pode achar que uma mulher pode tomar a decisão de abortar sem sofrer? Pura ignorância! Ela é a primeira a sofrer, ela é a primeira a saber que tem um filho no ventre, ela é a primeira a ter problemas de consciência, sem saber o que decidir!
Marianne
 
Caro Diogo Pereira Nunes,

Gostei de ler este teu texto. Não quer dizer que concorde com ele. Mas denota que certamente tiveste uma boa nota a Direito Constitucional.
É um texto bem construído. O problema é que o destróis na tua última frase:"É que ao passo que a questão da despenalização do aborto é uma questão de consciência individual"
É precisamente esta questão que dá alguma legitimidade ao Sim. Se o aborto é uma questão da consciência individual, então não deveria estar criminalizado, porque assim não dá liberdade àqueles que segundo a sua consciência querem fazer aborto. O mesmo se diga se se considerar o aborto uma questão de moral. Cada um pode ter a moral que quiser, por isso aquele que tem uma moral a favor do aborto não deveria ser punido. Não sei me consegui explicar?
O certo é que, eu acho que o aborto deve ser criminalizado, por não o entender só como uma questão de moral ou consciência individual. Entendo o valor vida (neste caso intra-uterina)como um bem jurídico. E cabe ao Estado salvaguardar este bem jurídico. Porquê? Isso agora dava pano para mangas e metia Kant, Locke e Rawls à mistura...

E concluindo, em princípio vou abster-me. Mas também, se o referendo é uma palhaçada como tu dizes para quê ir votar?

Cumprimentos
 
E cara comentadora Marianne,

Esse argumento risível de que "O corpo e o "filho" é delas" é daqueles argumentos do sim que leva os(as) abstencionistas ou pessoas em dúvida a votarem não.

Cumprimentos
 
A questão, cara Marianne, é que a pergunta do referendo é uma mentira. O projecto que o PS apresentou é uma liberalização total até às 10 semanas, sendo que às 10 semanas e um dia, a mulher é presa.

Assim sendo, se fosse realmente uma despenalização, provavelmente até votaria sim, mas liberalização, nem pensar.

Sugiro uma leitura: www.assimnao.com
 
Caro Ega,

O que quis dizer com esta questão ser uma questão de consciência pessoal diz mais respeito ao facto de o voto nesta questão não se prender tanto com confissões político-partidárias, mas mais com a ética e a moral.

Porque no fundo, a despenalização do aborto, que eu entendo acabar por nos levar a uma liberalização e generalização tácita da prática do aborto, até a título de método contraceptivo, jamais poderá ser uma questão cuja resposta se extinga na fronteira entre individuo e colectividade.
 
Enviar um comentário



<< Home

Arquivos
  • julho 2006
  • agosto 2006
  • setembro 2006
  • outubro 2006
  • novembro 2006
  • dezembro 2006
  • janeiro 2007
  • fevereiro 2007
  • março 2007
  • abril 2007
  • maio 2007
  • junho 2007
  • julho 2007
  • agosto 2007
  • setembro 2007
  • outubro 2007
  • novembro 2007
  • janeiro 2008
  • fevereiro 2008
  • março 2008
  • abril 2008
  • junho 2008
  • julho 2008
  • agosto 2008
  • setembro 2008
  • outubro 2008
  • novembro 2008
  • dezembro 2008
  • junho 2009
  • Powered by Blogger