Santana, dois anos depois
Contraditória a entrevista de Santana Lopes na RTP. Oscilando entre a crítica e a tolerância, a mágoa e o perdão, revelou-se em certos momentos fastidiosa, ou, pelo menos, não tão interessante como prometia ser.
Quase dois anos depois da polémica dissolução Parlamentar que, segundo alguns autores, ligará o nome de Jorge Sampaio à recuperação do conteúdo jurídico-político da responsabilidade do governo perante o Presidente (v. Pedro Lomba em artigo de opinião no DN, a propósito do balanço do decénio do Presidente Sampaio), creio que começamos a estar em condições de analisar os factos com alguma objectividade e de forma mais desapaixonada:
1. Santana ascendeu à liderança do governo em condições efectivamente delicadas. A somar à pesada derrota da coligação nas europeias de Junho de 2004 estava a saída de Durão Barroso – vista por muitos como uma fuga - e o impacto negativo das políticas de contenção e austeridade, de cujos resultados não se viam mais do que sinais exíguos;
2. O povo não percebeu como é que uma pessoa que não foi eleita chegou a primeiro-ministro e formou governo. De facto, uma coisa é o que a Constituição prevê – um sistema de governo semiparlamentar, com responsabilidade do Executivo perante a AR e sua nomeação pelo Chefe de Estado, atendendo aos resultados das eleições parlamentares, mas não dependente da realização destas antes do fim de uma legislatura –, outra é o que as pessoas entendem – presidencialização do cargo de primeiro-ministro e eleições legislativas com carácter plebiscitário relativamente ao governo e um desvio de atenções da designação específica dos Deputados. E na realidade, parece que estas duas perspectivas, são, por vezes, inconciliáveis!;
3. A formação do elenco governativo, foi tudo, menos um exercício de liberdade do primeiro-ministro. Do peso da herança “barrosista” à necessidade de compatibilização com os intentos expansionistas do parceiro de coligação – recorde-se que com a mudança de Governo, Portas “ganhou” mais um Ministério e outras tantas secretarias de Estado, sinal indesmentível do reforço do peso do CDS - passando pelas indicações genéricas gizadas pelo PR – do cumprimento das quais dependia a nomeação e a manutenção em funções do Executivo – é justo afirmar, que, pesaram sobre Santana pressões e limitações de várias ordens;
4. Nunca Santana Lopes foi uma personalidade particularmente repeitada – tanto por adversários, como por companheiros de partido – e reveladora de equilíbrio. Daí que, os sectores mais ortodoxos da nossa classe política tenham encarado com verdadeiro pânico a sua chegada à liderança do Governo. E daí também que alguns nomes do núcleo duro da governação barrosista tenham optado por regressar aos bastidores – casos, mais conhecidos, de Marques Mendes e Manuela Ferreira Leite – quando o ex-PM partiu para Bruxelas;
5. Não parece por isso estranho que, aqueles que viram com receio a constituição do XVI Governo, tenham sido os primeiros a criticá-lo fortemente, quando os primeiros sinais de descoordenação se instalaram, concretizando as previsões mais pessimistas. Na linha da frente dos críticos estiveram Marques Mendes, Cavaco Silva – de forma tácita, com a famosa “metáfora da má moeda” – e Marcelo Rebelo de Sousa, que na altura, na antena da TVI, garantia que o Executivo se aproximava do pior de Guterres;
6. Santana Lopes fez tudo menos causar surpresas. Menos de um mês depois de tomar posse já dava sinal de não controlar o governo e de presidir a uma equipa desorganizada, desarticulada e inoperante. Paulo Portas impunha a sua linha de rumo em episódios mediaticamente negativos como o do “Barco do Aborto”, e de entre os poucos Ministros a quem se podia, com isenção, reconhecer alguma competência técnica, uns estavam colocados em Pastas que nada tinham a ver com a sua preparação – veja-se o caso de Fernando Negrão, incompreensívelmente titular da Segurança Social e não da Justiça ou da Administração Interna, como seria de esperar – outros, numa lógica meramente individualista, procuravam perpetrar reformas nos respectivos sectores, alheios à concertação sistémica à qual as mesmas tinham de ser sujeitas;
7. A somar a tudo isto temos os episódios polémicos, abundantes, frequentes e pouco favoaráveis à dignidade institucional de qualquer órgão soberano de um Estado: o desnorte de Maria do Carmo Seabra perante o caótico arranque do ano lectivo 2004/05; o desastroso apelo ao contraditório do Ministro Rui Gomes da Silva, entendido como uma forma de tentar silenciar Marcelo Rebelo de Sousa – então comentador da TVI e crítico acérrimo do Governo; o autismo autoritário de Nuno Morais Sarmento e, a “gota de água”, que foi a demissão de Henrique Chaves, acusando o primeiro-ministro de falta de liderança;
8. No plano da Execução programática, a crise económica não dava sinais de ceder e o déficit orçamental previa-se poder vir a ultrapassar os limites impostos pelo PEC. Ao mesmo tempo, Santana coloria a realidade, atitude que apenas contribuíu para o seu descrédito enquanto político e enquanto primeiro-ministro;
9. Sucediam-se os alertas do Presidente Sampaio, sinais do desconforto sentido em Belém, que deveriam ter conduzido a uma inflexão de certas políticas e não à manutenção da mesma linha de rumo;
10. Em jeito de conclusão, recorde-se que, à época, a opinião pública era quase unânime ao afirmar que o Governo não se estava a levar a sério;
Perante tal cenário, parece-me intuitivo constatar que a equipa de Santana Lopes não tinha condições para permanecer em funções até ao termo da legislatura. A dissolução parlamentar ou a demissão do governo eram quase inevitáveis. E Jorge Sampaio, como bom jurista que é, escolheu a alternativa de mais fácil fundamentação – recorde-se que o nº 2 do art. 195º da CRP, faz depender a demissão do governo da necessidade de assegurar o “regular funcionamento das instituições democrática”. A concretização deste conceito indeterminado, exigindo uma argumentação bastante sólida, é uma via naturalmente mais trabalhosa que a mera dissolução, a qual, se respeitados os limites formais, temporais e circunstanciais a que aludem os arts. 113º/6 e 172º/1 CRP, é um acto materialmente livre.(*)
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(*)Vai efectivamente neste sentido a posição da maioria da doutrina, apoiando-se no facto de não estarem consagrados, na letra da lei, quaisquer limites materiais expressos, à prática do acto de dissolução.
Por interpretação sistemática, também nos parece razoável afirmar que a necessidade do PR garantir o regular funcionamento das instituições democráticas (plasmada no art. 120º CRP), implica que todos os seus actos estejam funcionalizados à prossecução deste objectivo (incluindo o de dissolução).